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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A Arte de Ouvir





Certa vez fiquei responsável de fazer uma dinâmica com os colegas de trabalho. Na época achei apropriado a leitura de um texto reservando um espaço para uma breve bate-papo, bem informal. beleza, aconteceu como planejado, porém durante a leitura do texto me surpreendi quando vi algumas pessoas chorando... caramba - pensei eu - o texto mexeu com as pessoas, mexeu comigo também à primeira vez que o li. Na conclusão da vivência com os colegas pedi para eles fecharem os olhos e toquei no clarinete "Meditação" do Tom Jobim, que recomendo ouvirem  depois da leitura. Então como agora estamos concluindo um ciclo e começando outro, nada melhor que uma reflexão, uma meditação. Então ouçam Rubem Alves:

 

 









A Arte de Ouvir




 

 

De todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do   amor, do viver  juntos e da cidadania é a audição. Disse o escritor   sagrado: “No princípio era o Verbo”. Eu acrescento: “Antes do   Verbo  era o silêncio.” É do silêncio que nasce o ouvir. Só posso   ouvir a palavra se meus ruídos interiores forem silenciados. Só posso ouvir a   verdade do outro se eu parar de tagarelar. Quem fala muito não ouve. Sabem   disso os poetas, esses seres de fala mínima. Eles falam, sim. Para ouvir as   vozes do silêncio. Veja esse poema de Fernando Pessoa, dirigido a um poeta: “Cessa   o teu canto! Cessa, que, enquanto o ouvi, ouvia uma outra voz como que vindo   nos interstícios do brando encanto com que o teu canto vinha até nós. Ouvi-te   e ouvia-a no mesmo tempo e diferentes, juntas a cantar. E a melodia que não   havia se agora a lembro, faz-me chorar...” A magia do poema não está nas   palavras do poeta. Está nos interstícios silenciosos que há entre as suas   palavras. É nesse silêncio que se ouve a melodia que não havia. Aí a magia   acontece: a melodia me faz chorar.

Não nos sentimos em casa no silêncio.  Quando a conversa   para por não haver o que dizer tratamos logo de falar qualquer coisa, para   por um fim no silêncio. Vez por outra tenho vontade de escrever um ensaio   sobre a psicologia dos elevadores. Ali estamos, nós dois, fechados naquele   cubículo. Um diante do outro. Olhamos nos olhos um do outro? Ou olhamos para   o chão?  Nada temos a falar. Esse silêncio, é como se fosse uma ofensa.   Aí falamos sobre o tempo. Mas nós dois bem sabemos que se trata de uma farsa   para encher o tempo até que o elevador pare.

Os orientais entendem melhor do que nós. Se não me engano o   nome do filme é “Aconteceu em Tóquio”. Duas velhinhas se visitavam. Por horas   ficavam juntas, sem dizer uma única palavra. Nada diziam porque no seu   silêncio morava um mundo. Faziam silêncio não por não ter nada a dizer, mas   porque o que tinham a dizer não cabia em palavras. A   filosofia ocidental é obcecada pela questão do Ser. A filosofia oriental,   pela questão do Vazio, do Nada. É no Vazio da jarra que se colocam flores.

O aprendizado do ouvir não se encontra em nossos currículos. A   prática educativa tradicional se inicia com a palavra do professor. A   menininha, Andréa, voltava do seu primeiro dia na creche. “Como é a   professora?”, sua mãe lhe perguntou. Ao que ela respondeu: “Ela   grita...” Não bastava que a professora falasse. Ela gritava.  Não me   lembro de que minha primeira professora, Da. Clotilde, tivesse jamais   gritado. Mas me lembro dos gritos esganiçados que vinham da sala ao lado. Um   único grito enche o espaço de medo. Na escola a violência começa com    estupros verbais.  

Milan Kundera conta a estória de Tamina, uma garçonete. “Todo   mundo gosta de Tamina. Porque ela sabe ouvir o que lhe contam. Mas será que   ela ouve mesmo? Não sei... O que conta é que ela não interrompe a fala. Vocês   sabem o que acontece quando duas pessoas falam. Uma fala e outra lhe corta a   palavra: ‘é exatamente como eu, eu...’ e começa a falar de si até que a   primeira consiga por sua vez cortar: ‘é exatamente como eu, eu...’Essa frase   ‘é exatamente como eu...’  parece ser uma maneira de continuar a   reflexão do outro, mas é um engodo. É uma revolta brutal contra uma violência   brutal: um esforço para libertar o nosso ouvido da escravidão e ocupar à   força o ouvido do adversário. Pois toda a vida do homem entre os seus   semelhantes nada mais é do que um combate para se apossar do ouvido do   outro...”

Será que era isso que acontecia na escola tradicional? O   professor se apossando do ouvido do aluno ( pois não é essa a sua missão?),   penetrando-o com a sua fala fálica e estuprando-o com a força da autoridade e   a ameaça de castigos, sem se dar conta de que no ouvido silencioso do aluno   há uma melodia que se toca. Talvez seja essa a razão porque há tantos cursos   de oratória, procurados por políticos e executivos, mas não haja cursos de   escutarória. Todo mundo quer falar. Ninguém quer ouvir.



Todo mundo quer ser escutado. (Como não há quem os escute, os   adultos procuram um psicanalista, profissional pago do escutar.) Toda criança   também quer ser escutada. Encontrei, na revista pedagógica italiana “Cem   Mondialità” a sugestão de que, antes de se iniciarem as atividades de ensino   e aprendizagem,  os professores se dedicassem por semanas, talvez meses,   a simplesmente ouvir as crianças. No silêncio das crianças há um programa de   vida: sonhos. É dos sonhos que nasce a inteligência. A inteligência é a   ferramenta que o corpo usa para transformar os seus sonhos em realidade. É   preciso escutar as crianças para que a sua inteligência desabroche.

Sugiro então aos professores que, ao lado da sua justa   preocupação com o falar claro, tenham também uma justa preocupação com o   escutar claro. Amamos não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta   bonito. A escuta bonita é um bom colo para uma criança se assentar...

Rubem Alves








Meditem e comentem...

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